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Sobre a negação (o mecanismo e a actual)

Há um mecanismo psicológico de defesa do ego que nos leva a negar a existência de algo que seja particularmente doloroso.

Uma menina violentada por alguém da família que conte à mãe, a reação mais comum desta é gritar com a menina, chamar-lhe mentirosa e dizer-lhe para nunca mais repetir aquilo. Se o estupro se ficou pela infância, é comum também que a menina o apague da memória. Sabe que houve algo, percebe que tem comportamentos estranhos em relação aos homens, ao prazer ou ao seu corpo; pode até lembrar-se de alguma coisa, mas não recorda o que se passou.

Toda a gente sabe que o marido a “trai” ou a mulher o “trai”, mas ela jura a pés juntos que é impossível. Recordo um colega que numa viagem de trabalho, no dia em que me conheceu, queria “dormir” comigo. Depois contava-me as aventuras que ia tendo. Até ao dia do seu funeral, em que conheci a viúva e ela me disse que punha as mãos no fogo: que ele nunca a tinha “traído”. (Coloco traído entre aspas, porque estou a usar a palavra da forma que é comumente utilizada.) 



Ele apanhava bebedeiras enormes. Mas as bebidas desapareciam das garrafas mais depressa do que a gente as bebia. Eu encontrava frequentemente os gins, whiskeys, aguardentes e afins com as tampas mal fechadas. Comecei a achar que por isso o álcool evaporava. Abaixo do nosso 5º andar, no chão, havia garrafas e garrafas vazias, que alguém atirava pela janela. Eu indignava-me. “Como é possível? Que gente tão porca!” . Ele concordava. Até que um dia, no decorrer de mais uma violenta discussão em que ele estava bebedíssimo, tive um ataque. Não me lembro bem, sei que chorei, gritei, esperneei, atirei-me ao chão, até que ele, muito aflito, ficou subitamente sóbrio e me disse: “Desculpa, eu sou alcoólico, por favor ajuda-me.”

O meu filho foi educado basicamente por mim, uma educação baseada no respeito e na confiança. Nunca toquei em nada dele sem a sua permissão, incluindo arrumar-lhe a mala da escola quando era pequeno, a roupa ou os brinquedos. Na verdade nunca lhe arrumei a mala. Sempre falámos de tudo. Sempre lhe referi as minhas dificuldades e lhe pedi opinião. Ele viveu também com esta pessoa, que sempre o tratou bem, e protegíamo-lo das discussões. Sempre o ensinei a respeitar toda a gente, incluindo quem por vezes o tratava mal. Na escola foi uma espécie de guardião das meninas.

Aldrabar o quer que seja para o meu filho está fora de questão. Seja quem for, seja a empresa, seja o estado. Da mesma forma acredita em tudo quanto é médico e afim. Defende a pés juntos o Bill Gates, inicialmente defendeu o confinamento, indigna-se com as minhas “teorias da conspiração”, etc. 




Além de se calhar ser a pessoa mais honesta que conheço, é também das mais inteligentes. Este não procurar informação que não seja oficial, não tentar ver se para lá do benemérito poderá haver mais alguma coisa, este acreditar em tudo o que é tradicional, têm-me deixado perplexa. Parece-me que se enquadra no tal padrão de negação. Tendo crescido aprendendo a ser honesto, com pessoas em quem podia confiar, apoiado na escola e na faculdade pelos professores, distinguido entre os colegas de trabalho e superiores hierárquicos, será que desenhou o mundo a esta imagem e é demasiado admitir que existe outro lado? (Sim, eu sei que não estou a ver o filme todo, e que isto pode ser muito mais do que isto, são hipóteses que me vão surgindo.)

Nas faculdades de medicina ensina-se que só a medicina ocidental é válida, que o resto não é científico, e que só a farmacologia serve. (Tal como as religiões cada uma diz que só ela é verdadeira.) Grande parte dos médicos não aceita outras terapias. Chegam a ser patéticos. Já por duas vezes com a minha mãe explicámos que os medicamentos para as dores pouco resultam, mas que acupuntura e massagem sim, mas eles mesmo assim torcem o nariz e receitam mais medicamentos. Apesar de entrarem para as faculdades com médias de 19 e 20, uma grande parte dos médicos não consegue ver para lá da sua coisa.

As pessoas aprenderam a confiar nos médicos, são eles que as tratam. Algumas, já perceberam que por vezes o tratamento é pior que a doença, mas muitas não. Não acreditar nos médicos está fora de questão mesmo quando as provas são em sentido contrário. A minha mãe a primeira vez queria tomar os comprimidos, desta segunda, em que o fármaco já ia para o campo da droga dura, ela própria disse que era melhor não.

E os políticos? Dão-se a si próprios ordenados várias vezes superiores aos que atribuem às outras pessoas, dão-se reformas vitalícias após um ou dois mandatos, nos últimos anos têm sido de tal forma apanhados em esquemas de corrupção que vários têm sido presos. Mas mesmo assim os eleitores continuam a votar e a acreditar neles. 



E os outros? Os novos partidos? Aqueles que nunca governaram? Que para alguns (utópicos como eu) eram uma derradeira esperança? Como é que uma pessoa acha que um partido que diz que defende os trabalhadores agora pode estar a defender um lobby mundial? Ou um que defende os animais e a natureza, agora alinhar com os principais inimigos?

É forte demais! Para a maioria (?) dos apoiantes, aceitar que foram enganados é demasiado forte, é melhor acreditar que há de facto um problema; tal como a menina violada se esquece que o foi ou pensa que foi culpada; tal como a traída acha que o seu marido é um santo e que só as outras têm pecadores, e eu que preferi que as bebidas alcoólicas evaporassem das garrafas e os vizinhos fossem porcos, em vez de perceber que tinha em casa uma pessoa com uma doença grave e não “um gajo muita mau para mim”.

Ser humano é uma coisa mesmo complicada. Gritar “Acorda!” não ajuda. Ajudaria se a pessoa estivesse a dormir aquele sono deitado na cama. "Dormindo em pé", para usar uma expressão que ouvi uma vez, acordar “é um negócio entre a pessoas e Deus”. (Ou traduzindo para "brasileiro": “é preciso cair a ficha” e isso não depende de ninguém.)

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